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Direito à felicidade: o reconhecimento da união homoafetiva pelo Supremo Tribunal Federal

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Direito à felicidade: o reconhecimento da união homoafetiva pelo Supremo Tribunal Federal

Matheus Santana Pinheiro

Maysa da Silva Lemos

Diversas são as acepções do que vem a ser a felicidade, que podem variar de acordo com os anseios individuais de cada pessoa. A sensação de bem-estar e contentamento que pode transcender o espaço-tempo é invariavelmente humana em seus mais diversos aspectos, assim, compreende-se que em uma sociedade democrática cada indivíduo deve ter assegurado o seu direito à felicidade. No que concerne uma sociedade regida por um Estado Democrático de Direito, as pluralidades devem ter seu respeito resguardado, bem como assegurado de maneira equânime para cada um. Diante de tal raciocínio, ao alocar esse entendimento ao Direito de Família, o núcleo basilar que compõe a sociedade é o primeiro conjunto que proporciona os valores e a felicidade ao ser humano. 

Um corpo familiar, em sua definição primária, é constituído por dois ou mais indivíduos que se unem visando o compartilhamento das mais diversas esferas da vida e realização pessoal ao coabitar em convívio diário visando a felicidade compartilhada. Segundo Celso de Mello, às uniões homoafetivas, do mesmo regime jurídico aplicável à união estável entre pessoas de gênero distinto justifica-se e legitima-se pela direta incidência, dentre outros, dos princípios constitucionais da igualdade, da liberdade, da dignidade, da segurança jurídica e do postulado constitucional implícito que consagra o direito à busca da felicidade, pois cada um deve ser livre para construir o futuro que lhe convier.

Na sociedade hodierna, o modelo familiar vigente é o da família eudemonista, em que a felicidade individual ou coletiva é o fundamento da conduta humana moral, sendo, nesse sentido, moralmente boas as condutas que levam à felicidade. Destarte, em uma sociedade multicultural, os núcleos familiares passam por diversas modificações a depender dos valores que guiam a sociedade e do que se entende como família.

Ocorre que, a visão patriarcalista e heteronormativa não se amolda a uma sociedade plural que reconhece as diferenças e os grupos minoritários que a compõe, à vista disso, a família passou a ser pautada na afetividade conforme entendimento do Código Civil Brasileiro. Todavia, é notório que a sociedade brasileira é majoritariamente conservadora e não superou os entraves frutos da lgbtqia+fobia. Desse modo, somente por meio de um embate judicial, os casais homoafetivos tiveram sua união estável equiparada e reconhecida pelo STF, haja vista que todos os indivíduos têm o direito de construir e almejar sua própria felicidade.

O julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 123 tratou acerca da união homoafetiva e o seu reconhecimento como instituto jurídico, onde foi discutida a liberdade que cada indivíduo possui para dispor da própria sexualidade no que concerne o direito à intimidade e à vida privada. Diante de uma matéria que suscitou debates ao longo dos anos, é notório que a interferência do STF é assertiva para apaziguar e tentar proporcionar estabilidade jurídica mediante o conflito. 

Por isso, a observância do posicionamento adotado pelo STF no decurso do tempo se mostra imprescindível para entender os desdobramentos e a argumentação que cercam a controvérsia. Em suma, o presente estudo se compromete a dissertar sobre como o princípio implícito do direito à felicidade dialoga com a decisão da ADPF 123 e ADI 4.277, para isso, realizou-se uma análise acerca dos pontos principais que envolvem a temática, tais como, o conceito de direito à felicidade, a discussão sobre o ativismo judicial e os desdobramentos jurídicos do julgado (Resolução n. 175 do CNJ e Enunciado n. 601 da VII Jornada de Direito Civil). Para que, dessa forma, seja possível compreender se as garantias dos indivíduos estão sendo plenamente satisfeitas ou se estão sendo submetidas à contenção perante os conservadorismos da sociedade.

 

1 O DIREITO À FELICIDADE E OS NÚCLEOS FAMILIARES CONTEMPORÂNEOS

 

Segundo Cármen Lúcia, o Direito Constitucional existe para combater todas as formas de preconceito, contra quem quer que seja, pois o preconceito merece o repúdio de todos que se comprometem com a justiça e com a democracia.

O Direito, como instrumento regulador da conduta humana, almeja a paz e a justiça social para todos indiscriminadamente, uma ambição utópica que impulsiona continuamente a sociedade. Decerto, atualmente, a convivência social não alcançou os patamares ideais de isonomia, mas persistem as lutas por tratamento igualitário entre aqueles que compõem uma comunidade, principalmente, entre os que são marginalizados por serem diferentes daquilo que é instituído como normal por uma maioria dominante socialmente. 

A família, o primeiro núcleo no qual um indivíduo é inserido, é uma mini-comunidade que através dos seus emaranhados forma a humanidade. Dessa maneira, o núcleo familiar é basilar na construção ética e ideológica do caráter individual, haja vista que molda o comportamento daquele indivíduo na sociedade. Assim, a interferência estatal nos diversos tipos de núcleos familiares impede que os indivíduos tenham assegurados seus direitos de liberdade, mas principalmente, impede que cada um possa buscar sua felicidade conforme lhe convém.

 

1.1 “ESTA PARTE DA MINHA VIDA, ESTA PEQUENA PARTE, SE CHAMA FELICIDADE”

 

No filme “À Procura da Felicidade”, dirigido por Gabriele Muccino, o personagem Chris Gardner, juntamente com seu filho Christopher, enfrenta as adversidades da vivência humana à procura daquilo que ele acredita que seja sua felicidade. Para ele, a felicidade é o momento em que ele consegue alcançar aquilo que tanto almejava após tempos de adversidade, ao mesmo tempo que consegue cultivar e manter um relacionamento familiar saudável com seu filho. Pois, segundo ele, aquela pequena parte da sua vida se chamava felicidade.

Destarte, no âmbito jurídico e fora dele as palavras são carregadas de significados, pois através das palavras os indivíduos se comunicam e convivem em sociedade, a exemplo, a palavra felicidade possui um significado próprio para cada um. Assim, as palavras são reflexo daquilo que a sociedade define, sendo uma construção semântica mútua, porque os seres humanos criam e são criados pelas palavras. 

Ao combater-se o preconceito, os indivíduos progridem a convivência em sociedade e consolidam o Direito, haja vista que passam a lidar com as diferenças de modo saudável e coabitam em maior harmonia. Uma perspectiva que tenha esse entendimento pode ser vista como utópica, mas a esperança de dias melhores faz com que os seres humanos persistam no labor da vida.

Diante de tal percepção, ao se observar a mudança do termo ‘homossexualismo’ para ‘homossexualidade’ é possível compreender que a sociedade passou por progressos semânticos visando desestigmatizar um preconceito profundamente enraizado, que resulta em violência para com aqueles que são atraídos por indivíduos do mesmo sexo ou gênero. Assim, a classificação da referida orientação sexual como uma doença serviu para perpetuar estigmas e fomentar o entendimento de que a homossexualidade era um crime passível de punição e ostracismo social. 

Ocorre que, apenas em 1990 a homossexualidade deixou de ser tida como uma doença e passou a ser reconhecida como uma orientação sexual, sendo descriminalizada em diversos países. Em 17 de maio de 1990, a Assembleia-Geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da sua lista de doenças mentais, a Classificação Internacional de Doenças (CID), data que passou a ser celebrada como o Dia Internacional contra a Homofobia e em seguida, passou a celebrar-se o Dia Internacional contra a Homofobia, a Transfobia e a Bifobia.

 

1.2 A PLURALIDADE FAMILIAR 

 

O ordenamento jurídico brasileiro, por meio da Constituição Federal, resguarda a família com especial proteção do Estado, de modo que a família é a base da sociedade e deve ter suas garantias fundamentais asseguradas. Ademais, ao abandonar o entendimento que somente através do matrimônio era possível formar-se uma família, a Constituição reconheceu a pluralidade familiar existente na sociedade brasileira. 

Outrossim, com um decurso histórico longo, a discussão acerca dos direitos dos homossexuais foi galgando espaço na comunidade, haja vista que casais homoafetivos que buscavam a formalização de suas relações tendiam a obter decisões favoráveis ou desfavoráveis quando judicializadas ações de reconhecimento de união estável. 

Há de suscitar a “supremocracia” e atuação incisiva do judiciário em questões que são invisibilizadas pelo legislador, todavia, não se pode negar que por meio do entendimento do STF, de natureza vinculante, houve o afastamento de qualquer interpretação do Código Civil que impedisse o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Além disso, fortificando a decisão e aplicando-a de maneira efetiva na sociedade, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução 175/2013, determinando que os cartórios realizassem casamentos de casais do mesmo sexo.

Por conseguinte, ao observar a decisão judicial de maneira isolada, é possível perceber a sua importância para o Estado Democrático de Direito e para o avanço no reconhecimento dos direitos das pessoas LGBTQIA+. Consoante a tal pensamento, Luis Alberto Warat, afirma que por meio da decisão jurídica empírica e racional, é possível construir uma verdade fundamentada na realidade, ao se buscar a garantia contra as mutações ideológicas da própria ideologia dominante: 

 

Pode-se, afinal, examinar a questão das funções dos métodos interpretativos deste outro ângulo, isto é, através de um conjunto de crenças configuradoras de uma ideologia específica para o direito. É mediante as grandes correntes do pensamento jurídico e dos métodos interpretativos que se consegue a articulação de todas estas crenças. Por exemplo, no caso das fórmulas interpretativas a exegese reafirma a ideia da legislação racional, o método dogmático gera a suposição de um ordenamento coerente e autossuficiente; o método teleológico reitera a crença numa ordem protetora e não discriminatória em relação aos súditos, o positivismo sociológico consolida o dogma de que o julgador busca a verdade dos fatos provados e assim por diante. Todos em seu conjunto consolidam a crença de que o julgador, graças aos métodos interpretativos, é neutro e imparcial. Chegamos, aqui, ao ponto chave onde se vê que a função dominante dos métodos interpretativos é a de brindar garantia absoluta contra a arbitrariedade, anseio este que oculta uma maior busca de garantia contra as mutações ideológicas da própria ideologia dominante (WARAT, 1979).

 

Conclui-se, portanto, que mesmo diante dos conservadorismos extremistas que cercam o país, através do debate e da luta pelo reconhecimento de direitos fundamentais, a sociedade progride no tratamento isonômico e na difusão de políticas públicas que abarque todas as famílias plurais que existem no Brasil. A fim de que, utilizando-se dos institutos jurídicos que regem a sociedade, a exemplo do Judiciário que decide acerca dos casos concretos, as pessoas possam requerer aquilo que lhes apetece, como o direito de ir em busca de sua própria felicidade, independentemente de gênero ou sexualidade.

 

2 O RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

 

Antes de abordar a questão do reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo pelo STF, advindo das decisões firmadas na ADI 4.277/DF e na ADPF 132/RJ, é importante discorrer sobre a discussão do ativismo judicial que gravita em torno dessas ações constitucionais. Pois, para alguns teóricos do direito, tais atos do judiciário, que possibilitaram o enquadramento da união homoafetiva como forma de entidade familiar, estão dotados de autoritarismo. Nesse sentido, torna-se essencial, para maior compreensão da temática civilista proposta, analisar com base em uma ótica constitucional, como se comporta o fenômeno do “ativismo judicial” no contexto brasileiro.

 

2.1 A DISCUSSÃO SOBRE O ATIVISMO JUDICIAL

 

Primeiramente, deve-se observar o princípio da separação dos poderes, no qual esses são harmônicos e independentes entre si e um não pode se sobressair em detrimento do outro. Essa teoria foi fundamentada por Montesquieu, que afirmava que todo homem que detém o poder concentrado está sujeito a abusar dele. Logo, os três poderes do Estado: Executivo, Legislativo e Judiciário devem ser manifestados em órgãos distintos, cada um executando sua função típica. Contudo, ao analisar o contexto brasileiro, percebe-se que a teoria de Montesquieu foi aplicada de forma mitigada, pois admite-se, em alguns casos, que um poder realize tarefas que seriam típicas de outro poder.

Assim, o Poder Judiciário no Brasil, além de desenvolver sua função típica de resolver conflitos tomando como alicerce as normas existentes, também possui funções atípicas. Devido sua linha tênue, é no âmbito desta última que se gera a controvérsia de intromissão do judiciário nos demais poderes (Executivo e Legislativo). Já que a Constituição Federal estabelece o instrumento de controle de Constitucionalidade, no qual um poder fiscaliza o outro como forma de preservação da harmonia jurídico-política e, consequentemente, em prol do bem público.

Nesse sentido, para Ronald Dworkin, esse ativismo judicial pode ser compreendido como uma atitude interpretativa intensa da Constituição, no qual nasce da urgência percebida pelo Judiciário de desempenhar um papel ativo na efetivação dos valores constitucionais. O que se assemelha, de certo, com o ponto de vista de Luís Roberto Barroso, cujo também salienta que o ativismo judicial pode ter o objetivo de assegurar a solidificação dos valores e fins constitucionais. Logo, fundamenta Barroso (2009):

 

O ativismo judicial é caracterizado pela aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto, independentemente da manifestação do legislador ordinário; pela declaração de inconstitucionalidade dos atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Carta Magna de 1988; e pela imposição de condutas e abstenções ao Poder público, notadamente em matéria de políticas públicas (BARROSO, 2009, p. 75.).

 

Assim, tal atuação ampla e definitiva do judiciário para garantir a concretização dos valores constitucionais é apreciada por muitos que alicerçam suas perspectivas com o art. 5º, XXXV, CF/88, onde é disposto que todos os cidadãos podem reivindicar seus direitos. Ou seja, em casos de omissão do legislativo sobre os direitos dos indivíduos, o judiciário não pode se fazer inerte. Porquanto, no que tange o nosso objeto de estudo, o Estado se mantinha ausente quanto às relações homoafetivas, que inegavelmente existiam no mundo fático. Dessa maneira, o STF se utilizou de uma mutação constitucional para interpretar que a proteção à família incluía a proteção aos casais homoafetivos, pois eles são uma entidade familiar.

Há aqueles que propagam críticas ferrenhas ao ativismo judicial, onde acusam o judiciário de legislar passivamente. Visto que, segundo os críticos, os juristas não passam pelo processo eleitoral, isto é, não possuem legitimidade representativa para tomar escolhas políticas dentro do corpo social. Ives Gandra Martins Filho, por exemplo, no seu artigo “Direitos Fundamentais”, critica a possibilidade da regularização da união homoafetiva, tendo em vista que para esse teórico, o judiciário instrumentalizado de ativismo, agiu como Poder Legislativo, causando crise no princípio da separação dos poderes.

Apesar das críticas expostas, percebe-se que um judiciário forte é essencial para garantir os direitos fundamentais, especialmente daqueles que fazem parte dos grupos minoritários, contingente que sofre com ausência de políticas públicas de inclusão. Ocorre que, deve-se observar, por óbvio, a imponência judicial, no qual o judiciário toma para si toda a autonomia estatal e desequilibra os poderes. 

 

2.2 ADPF 123 E ADI 4.277

 

É perceptível que o julgamento da ADPF 123 e ADI 4.277, no dia 05 de maio de 2011, foi um grande progresso para os direitos da população que diverge da heteronormatividade. Contudo, antes de se abordar o mérito da decisão e seus efeitos na vida civil, é importante frisar o que são esses instrumentos de controle concentrado de constitucionalidade brasileiro. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é um tipo de ação apresentada perante o Supremo Tribunal Federal com o intuito de prevenir ou corrigir violações a direitos essenciais decorrentes de atos realizados pelo Poder Público. Por outro lado, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) é um dispositivo utilizado para analisar a inconstitucionalidade de uma norma ou parte, desse modo, aferindo se tal dispositivo pode permanecer no ordenamento jurídico.

Nessa conjuntura, em meio a inércia do legislativo no que tange a questão da regulamentação das relações homoafetivas, a ADPF 123/RJ tinha como intuito principal reconhecer que as decisões do Poder Judiciário, que fossem de encontro com a equiparação da união entre pessoas do mesmo sexo, feriam os preceitos fundamentais. Assim, tal ação objetivava que o Supremo Tribunal Federal interpretasse o art. 19, II e V e o art. 33, I a X e parágrafo único, do Decreto-Lei n. 220, de 18.07.1975, do Estatuto dos Servidores Civis Do Rio de Janeiro à luz da Constituição. Já a ADI 4.277 visava a qualificação da união homoafetiva como ente familiar e devido à temática semelhante as duas ações foram julgadas em conjunto.

Uma série de discussões giraram em torno do julgamento da lide estudada em tela devido aos pontos de vista conflitantes que assolam essa temática. À vista disso, os que desejavam a estagnação dos direitos da população homoafetiva, com a improcedência da ação, afirmavam que a regulamentação da união entre pessoas do mesmo sexo seria um precedente para regulação da relação incestuosa. Tal argumentação descabida objetivava, sobretudo, causar o temor popular, haja vista que o incesto fere a ordem pública. 

Além disso, argumentam, também, que a lei tinha uma visão restrita e taxativa com relação ao conceito de entidade familiar, pois o art. 226, § 3º, da CF, emprega tal termo apenas na relação entre homem e mulher. No entanto, essa afirmativa não pode ser tomada como incontroversa, uma vez que a ideia vem sendo repelida há muito tempo. Paulo Luiz Netto Lôbo, por exemplo, em seu artigo “Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus”, salientou que esse rol não é taxativo. Pois, para ele a ideia de família sofreu mudanças tornando-se um conceito plural, com o passar dos anos, assim, o autor deixa claro que a Constituição Federal tem função de inclusão e igualdade, devendo o artigo ser interpretado de maneira expansiva.

Nesse cenário, Sílvio de Salvo Venosa (2023, v. 5: 872) destaca que o Projeto do Estatuto das Famílias n. 2.285/2007, orientado pelo IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, se desprendeu, de maneira percussora, dessa ótica cristalizada de formulação de família patriarcal e heteronormativa. Dado que, o artigo 68 desse dispositivo trouxe um olhar de aceitação para a relação afetuosa entre pessoas do mesmo sexo, ao reconhecer a união entre essas pessoas sem tocar no obstáculo constitucional que gravita essa questão. Assim, discorre tal artigo: 

 

É reconhecida como entidade familiar a união entre duas pessoas do mesmo sexo, que mantenham convivência pública e contínua, duradoura, com objetivo de constituição de família, aplicando-se, no que couber, as regras concernentes à união estável.

 

Apesar de todos os pontos controvertidos, expostos no presente estudo, a ADPF 123 e a ADI 4.277 foram julgadas conjuntamente procedentes por unanimidade entre os ministros do STF. Ou seja, houve uma ampliação dos direitos da população homoafetiva, haja vista que a união entre pessoas do mesmo sexo passou a ter os mesmos direitos que a união entre um homem e uma mulher, prevista no ar art. 1.723 do CC. Houve divergências apenas em como se chegar a essa decisão, já que parte dos ministros seguiram o relator, Carlos Ayres Britto, no qual se alicerçaram em um entendimento constitucional para ir de encontro com qualquer interpretação do artigo 1.723 CC que inibia a união homoafetiva. Por outro lado, outros ministros sustentavam que tal união deveria ser considerada uma nova entidade familiar.

Flávio Tartuce salientou o grande progresso dessa decisão erga omnes:

 

É notório, no campo jurisprudencial, a decisão histórica do Supremo Tribunal Federal, do dia 5 de maio de 2011, que reconheceu, por unanimidade, a união homoafetiva como entidade familiar, o que representou uma grande revolução no sistema jurídico nacional, no julgamento da ADPF 132/RJ e ADI 4.277/DF. A decisão compara a união homoafetiva à união estável, para todos os fins jurídicos, tendo efeito vinculante e erga omnes (Tartuce, 2020, p. 1798).

 

Ademais, é válido dizer que os princípios foram instrumentos essenciais para guiar esse julgamento histórico, isso ocorre uma vez que é a partir deles que o ordenamento jurídico ganha uma direção mais clara e coesa. Nesse viés, observa-se que os ministros que julgaram a ADPF 123 e ADI 4.277 fundamentaram suas decisões em alguns princípios basilares da Constituição Federal, sendo esses: o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da igualdade (que dialoga com a vedação da discriminação odiosa) e o princípio da liberdade. Logo, torna-se imprescindível discorrer sobre como cada um desses princípios impactaram no entendimento de tal decisão. 

A Constituição Federal de 1988 estabelece a dignidade humana como um princípio fundamental em seu artigo 1º, inciso III. Quando trata do Direito de Família, a própria Constituição reafirma, no artigo 226, § 7º, que o planejamento familiar é fundamentado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável. Desse modo, excluir a população homoafetiva de constituir família, para o entendimento jurídica, colocando obstáculos para a regulamentação da união entre pessoas do mesmo sexo fere profundamente esse preceito fundamental, uma vez que é negligenciado o direito ao afeto entre as pessoas.

O princípio da igualdade que se combina com o da vedação da discriminação odiosa tem sua base constitucional no art. 5º, caput, e no art. 3º, inciso VI. Pois, em tais dispositivos é preceituado que para a norma jurídica todos são iguais em direitos e deveres, sem qualquer distinção, além de prescrever que o Estado tem como obrigação de garantir o bem de todos sem qualquer discriminação de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas. No entanto, antes do julgamento da ADPF 123 e ADI 4.277 tais princípios fundamentais ocorriam de forma exígua, uma vez que não se pode falar em igualdade quando o Estado é conivente, mesmo que passivamente, com a discriminação de direitos de um contingente da população que tem suas vontades afetivas deslegitimadas. 

Outro princípio que embasou a decisão, foi o da liberdade, haja vista que este, no que tange a autonomia dos homoafetivos, era fortemente ferido pela inércia do Estado. O referido princípio, também, está disposto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal, no qual é estabelecido a inviolabilidade da liberdade dos indivíduos. Rolf Madaleno sustenta que os direitos fundamentais, principalmente o direito à liberdade que é um direito de primeira geração, é como se fosse o alicerce do prédio que é o ordenamento jurídico e a democracia, no qual sem ele tudo desmorona. Assim, por óbvio, não há que se falar em um Estado Democrático se há indivíduos que têm sua liberdade de amar restringida. Logo, deve se valer a menor intervenção do Estado e a valorização da vida privada.

Como visto, a interpretação do conflito trazido no julgamento por princípios foi crucial para sua resolução. Nessa conjuntura, salienta Beatriz Helena Braganholo sobre a constitucionalização do Direito de Família brasileiro:

 

O Direito Constitucional é, mais do que nunca, responsável por regular as relações humanas, antes ditas meramente privadas e enquadradas como reguladas pelo Direito Civil. Seus interesses individuais são correspondentes a necessidades fundamentais do homem, tendo o dever de propiciar meios que levem a viver e relacionar de uma forma mais solidária, com respeito pelo outro.

 

Em suma, ao qualificar a união homoafetiva como entidade familiar, o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 123 e Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.477 rompeu com uma mentalidade preconceituosa arraigada na sociedade brasileira. Pois, tal decisão gerou uma contribuição pedagógica para o corpo social, além dos desdobramentos civis que serão abordados no próximo tópico. 

 

3 OS DESDOBRAMENTOS DO RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA NA SOCIEDADE

 

Rolf Madaleno invocou o art. 102, § 2º, da CF, para salientar que é vedada qualquer maneira de desobediência às decisões definitivas de mérito proferidas pelo STF nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade. Já que tais decisões terão eficácia contra todos e produzirão um efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, em níveis federal, estadual e municipal. Desse modo, devido a força da decisão erga omnes da ADPF 123 e ADI 4.277, o Estado passou a se preocupar mais com a efetivação dos direitos civis da população homoafetiva, gerando efeitos positivos no âmbito do Direito da Família.

Os benéficos desdobramentos da decisão que equiparou a união de pessoas do mesmo sexo com a união heterossexual foram se manifestando gradativamente. Pode-se destacar, por exemplo, que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2013, aprovou a Resolução n. 175, no qual se proibiu que os cartórios, de todo país, negassem aos casais homoafetivos a conversão de união estável para casamento ou recusassem a consumação do ato solene. Assim, segundo o próprio CNJ, o cartório que se respaldar de preconceito e discriminação para não fazer valer os direitos adquiridos na decisão ADPF 123 e ADI 4.277 poderá sofrer sanções. Além disso, foi inserida a possibilidade de abrir-se um processo administrativo contra autoridade que recusar celebrar a regularização de tais atos que põe início a entidade familiar.

Esse dispositivo foi um facilitador das questões burocráticas no que tange o reconhecimento jurídico da relação afetiva entre duas pessoas do mesmo sexo. Pois, antes dele para que o casal homoafetivo conseguisse o reconhecimento da sua união precisaria requerer perante o judiciário, o que gerava uma incerteza acerca do desfecho da decisão. Regina Bandeira (2017), no site oficial da Agência CNJ de Notícias, destacou que houve um crescimento exponencial desde que a Resolução n. 175 passou a vigorar, uma vez que em 2013 foram realizados 3.700 casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Já em 2015 foram celebrados 5.614, ou seja, houve um crescimento de 52%.

Assim, construiu-se um entendimento inclusivo no âmbito do judiciário, como percebe-se no seguinte julgado do TJSC:

 

Apelação cível – Direito constitucional e civil – Habilitação para casamento – União Homoafetiva – Sentença homologatória – Insurgência do Ministério Público – Alegada impossibilidade legal do reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Afastamento. Matéria pacificada pelo Supremo Tribunal Federal. Extensão à união homoafetiva de todos os direitos decorrentes da união estável. Interpretação conforme a constituição. Facilitação da conversão em casamento. Dever do estado. Comando constitucional. Sentença mantida. Recurso conhecido e desprovido.

(TJSC – Ap 0032578-16.2014.8.24.0023, 16-9-2016, Rel. Des. Jairo Fernandes Gonçalves).

 

Pode-se observar, de maneira clara, o fortalecimento dos efeitos de tal evolução no cenário jurídico com a aprovação do enunciado n. 601, apresentado na VII Jornada de Direito Civil, de 2015, promovido pelo Conselho Nacional Justiça (CNJ). Esse dispositivo confirmou o reconhecimento de que é existente e válido, no ordenamento jurídico brasileiro, o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Nessa perspectiva, tal enunciando, dotado de igualdade, deixou para atrás a obrigatoriedade do requisito de diversidade de sexo para contrair um casamento legal. Outrossim, indo contra qualquer diferença posta entre casais homoafetivos e heteroafetivos, tal dispositivo ratificou a possibilidade de casais homoafetivos converterem união estável em casamento, consoante o art. 266, § 3º, da CF.

Logo, a entrada em vigor dessas resoluções é uma forma do judiciário tentar eliminar todo tipo de dúvida ou objeção que poderia surgir depois do julgamento da ADPF 123 e ADI 4.277. Ou seja, é uma maneira de deixar claro a consolidação dos direitos que protegem e legitimam a união entre pessoas do mesmo sexo, evitando qualquer tipo de retrocesso. Portanto, o judiciário, nessas resoluções, buscou destacar o entendimento de que Direito de Família deve ser dotado de preceitos de inclusão e igualdade.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, é notável a extensa gama de argumentos utilizados pelos ministros acerca de suas perspectivas sobre a união estável entre casais do mesmo sexo, envolvendo valores como liberdade, dignidade da pessoa humana, igualdade, intimidade, sexualidade, felicidade, cidadania, privacidade e orientação sexual. Tais debates refletem a importância do tema para sociedade e para o Direito, além de colocar em pauta outras considerações acerca do funcionamento da sociedade brasileira.

Destarte, são posicionamentos que espelham, de maneira geral, as argumentações da sociedade acerca do tema, que se encerrou, naquele ponto, com a decisão de que as relações entre pessoas do mesmo sexo são equiparadas às uniões estáveis entre homens e mulheres, admitindo, assim, a união homoafetiva como um núcleo familiar. 

Outrossim, o impacto de tal decisão foi inegável para a sociedade, porque mesmo diante de controvérsias, a união entre pessoas do mesmo sexo foi reconhecida, bem como as diversas formas de se expressar a felicidade humana. Dessa maneira, a importância da decisão consolidou o entendimento de que todos têm o direito à felicidade e angariou reconhecimento internacional. Pois, em 2018, recebeu o certificado MoWBrasil, oferecido pelo Comitê Nacional do Brasil do Programa Memória do Mundo da Unesco e foi inscrito como patrimônio documental da humanidade no Registro Nacional do Brasil. 

Contudo, mesmo em face da decisão do STF, é notório que o debate não se findou e, dessa maneira, a pesquisa em torno do tema não foi encerrada, uma vez que, a sociedade é contínua em seu desenvolvimento. Todavia, as violências persistem, por isso, a união de casais homoafetivos continua sendo pauta de discussão e de luta.

Desta forma, faz-se necessário perceber que esses foram os valores tidos como prioritários na questão, mesmo diante da inconsistência da decisão com realidade brasileira, haja vista, que mesmo após uma década, casais do mesmo sexo ainda não possuem seus direitos plenamente assegurados na sociedade e são alvos de discursos extremistas que difundem o preconceito. 

Em síntese, é possível perceber que, assim como acreditava Rudolf von Ihering, a luta pelo Direito é incessante e o debate acerca das diversas formas de relacionamento e famílias também se mostra permanente na sociedade, sempre fomentando novas perspectivas favoráveis ou desfavoráveis. Demonstrando, assim, os desafios constantes para a consolidação dos direitos humanos em uma sociedade que preze pela felicidade.

 

REFERÊNCIAS

À PROCURA DA FELICIDADE. Direção: Gabriele Muccino. Produção de Overbrook. Estados Unidos: Columbia Pictures, 2006.

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Malheiros: São Paulo, 2011.

BANDEIRA, Regina. Casamento homoafetivo: norma completa quatro anos. Agência CNJ de Notícias, 9 maio 2017. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/lei-sobre-casamento-entre-pessoas-do-mesmo-sexo-completa-4-anos/. Acesso em: 16 jul. 2023.

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista de Direito do Estado, ano 4, nº 13: 71-91 jan/mar 2009.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 7ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. 

BRAGANHOLO, Beatriz Helena. Algumas reflexões acerca da evolução, crise e constitucionalidade do direito de família brasileiro. Revista Brasileira de Direito de Família, São Paulo: Síntese – IBDFAM, v. 28, fev/mar. 2005.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Planalto, Brasília, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 03 jul. 2023.

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