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A LEI Nº 13.434/2017 COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NAS PENITENCIÁRIAS FEMININAS BRASILEIRAS

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A LEI Nº 13.434/2017 COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NAS PENITENCIÁRIAS FEMININAS BRASILEIRAS

Mariana Silva de Oliveira

Giovana Letícia Sales Assunção Sousa

Palavras-chave: População carcerária feminina. Lei penal. Direitos humanos.

 

RESUMO

O Brasil é um dos países com maior população carcerária feminina do mundo. Entretanto, quando se trata da resolução dos problemas que afetam a execução adequada da lei penal, prevalece a perspectiva sob as circunstâncias particulares da população carcerária masculina, de modo a negligenciar as necessidades e interesses específicos das mulheres privadas de liberdade. Esse foco semiexclusivo aos homens presos constitui reflexo de uma tradição sexista, que consagra, em todas as instâncias de poder, a redução das necessidades femininas em favor das masculinas. Diante desse cenário, o percurso teórico e analítico do artigo foi delineado objetivando revelar como o encarceramento aflige a gestação da mulher em situação de cárcere, bem como a importância da promulgação da Lei nº 13.434/2017 para a satisfação dos direitos humanos no tocante a esta situação.

 

 INTRODUÇÃO

A juridicidade, em sua perspectiva funcionalista, objetiva o controle social por meio da prevenção e resolução de conflitos. Nesse aspecto, o Direito, segundo Bobbio (1997), constitui um conjunto de normas que visam a regulação social, tendo a força como instrumento de sua realização, constituindo sua coercibilidade. 

A partir do caráter coercitivo do Direito, isto é, a possibilidade de uso de força organizada como garantia do cumprimento da lei pelo Estado, Foucault (1977) analisa o sistema penitenciário como um conjunto de suplementos disciplinares – que deve cuidar do indivíduo em todos seus aspectos. O sistema carcerário, dessa forma, constitui uma instituição do poder estatal, que tem como intuito apenar os indivíduos que violarem a lei, “disciplinando-o”. 

Dentro dessa perspectiva, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022, p.397), estão sob a custódia do Estado Brasileiro mais de 820 mil pessoas. Desse total, no ano de 2021, 141.002 pessoas encontravam-se em prisão domiciliar e 674.163 estavam recolhidas em cela física, considerando o sistema federal e estadual (FBSB, 2022, p.398). Registrou-se, também, o aumento considerável de mulheres em privação de liberdade, tendo especial relevância o encarceramento decorrente dos delitos cominados na Lei 11.343/06, que define os crimes relacionados ao tráfico de substâncias ilícitas e dá outras providências (FBSB, 2022, p.399). 

Segundo informações reunidas pelo Departamento de Atenção às Mulheres e Grupos Específicos (2020) – vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública – a população feminina presa era constituída por 36.929 pessoas, o que representa cerca de 5% da população prisional.  No contexto da pandemia de Covid-19, foi possível perceber que, destas mulheres, 208 estavam grávidas, 44 estavam em puerpério e 12.821 eram mães de crianças de até 12 anos de idade. 

Diante do volume crescente do encarceramento feminino, é preciso levar em conta as especificidades deste grupo e de que maneira a vulnerabilidade decorrente da discriminação de gênero as atinge, especialmente no que tange ao exercício da maternidade. Isto posto, o ordenamento jurídico brasileiro engloba diversos dispositivos a respeito da preservação dos direitos fundamentais das mulheres, sob a tutela do sistema da justiça criminal. 

Dentre os dispositivos jurídicos, denotam-se a própria Constituição Federal, de caráter hierarquicamente superior e responsável por assegurar os direitos fundamentais inalienáveis do indivíduo; as “Regras de Bangkok”, elaboradas pela Organização das Nações Unidas em 2010 e reconhecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro em 2016; e a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84), que dispõe de modo mais específico em relação à assistência e à estrutura que o Estado deve prover às presas, em especial, às grávidas, parturientes e lactantes.

Ademais, destaca-se a Lei de nº 13.434, de 2017, que alterou o artigo 292 do Código de Processo Penal, acrescentando-o a proibição do uso de algemas durante atos preparatórios do parto, do trabalho de parto e do puerpério imediato. Diante disso, a modificação promovida se constitui de suma importância para evitar que às mulheres encarceradas seja dispensado um comportamento repressivo e desproporcional à situação particular derivada do período gestacional e do puerpério.

 Em consideração ao supracitado, expõe-se a necessidade de mapear e executar as políticas voltadas para mulheres encarceradas, com especial enfoque às gestantes, que necessitam de maiores cuidados, sobretudo no momento do parto e pós-parto. Desse modo, em homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana, é forçoso obstar que a vida dessas mulheres e de seus descendentes fiquem sujeitas à violência por vezes promovida pelo aparelho prisional. 

Pelo exposto, o artigo tem como finalidade analisar a proteção dos direitos fundamentais das gestantes encarceradas – sobretudo no que diz respeito à dignidade feminina durante a preparação para o parto, o trabalho de parto e o puerpério imediato, a partir do desenvolvimento de uma pesquisa bibliográfica, com enfoque qualitativo, acerca dos dispositivos presentes no ordenamento jurídico brasileiro, considerando as leis vigentes no território nacional e, especificamente, a Lei 13.434/2017. 

 O DIREITO E A REALIDADE DAS MULHERES GRÁVIDAS E PARTURIENTES ENCARCERADAS NO BRASIL

A Constituição Federal (1988), consagrada como norma superior do ordenamento jurídico brasileiro, é a principal responsável por assegurar os direitos fundamentais e inalienáveis do indivíduo, atribuindo-os eficácia vertical, maior proteção e aplicação imediata. 

Em seu Título II, que trata dos direitos e garantias fundamentais elencados na Constituição Federal, o artigo 5º, inciso III, fixa que ninguém poderá ser submetido a tratamento desumano e degradante. Por conseguinte, o inciso XLIX do mesmo artigo assenta que é assegurado aos presos o respeito à integridade física e à integridade moral. Outrossim, o inciso L, tratando especificamente das presidiárias, garante a elas condições para que possam permanecer junto de seus filhos, durante o período de amamentação deles. 

No âmbito do Direito Internacional Público, em 2016, o Supremo Tribunal Federal reconheceu as “Regras de Bangkok”, elaboradas pela 65ª Assembleia da Organização das Nações Unidas, incorporando-as ao ordenamento jurídico brasileiro. O objetivo das Regras de Bangkok (2016) é ampliar a visibilidade das demandas das mulheres sujeitas ao sistema prisional e cautelar, tratando da situação da população feminina encarcerada e da situação de mulheres submetidas a medidas restritivas de liberdade, considerando o estado de vulnerabilidade de gênero, agravado quando se trata de gestantes e lactantes. 

Acerca desse dispositivo legal, é importante ressaltar a Regra 24, que proíbe o uso de instrumentos de contenção em mulheres presas durante o momento de parto e pós-parto imediato. Ademais, a regra 42, §2º estabelece que o regime prisional deverá atender às necessidades das gestantes, lactantes e mães, por meio de serviços e instalações próprias para elas nos estabelecimentos prisionais. Ressalta-se também a regra 48, que determina o oferecimento de alimentação adequada, ambiente saudável e oportunidades de exercício físico às gestantes e lactantes.

Paralelamente, segundo as normas brasileiras de execução penal, o artigo 14, §3º, da Lei nº 7.210/84 (Lei de Execução Penal) determina a garantia de assistência médica à mulher, sobretudo nos períodos de pré-natal e pós-parto. Por fim, o art. 89 da Lei de Execução Penal estabelece que as penitenciárias femininas sejam dotadas de espaços adequados para gestantes e parturientes. 

Diante dessa análise, depreende-se a existência de diversos diplomas legais, em diferentes âmbitos, que objetivam a preservação da dignidade humana da mulher grávida encarcerada, por meio do reforço à proteção aos direitos fundamentais. Contudo, apreciando o cenário fático, denotam-se inúmeras violações à essas normas pelo próprio sistema prisional, de modo a comprometer os direitos humanos das mulheres face ao tratamento negligente e violento conferido às detentas gestantes. 

Segundo dados coletados entre dezembro de 2015 e junho de 2016, obtidos pelo Departamento Penitenciário Nacional (2018), a população carcerária feminina era composta por 42 mil mulheres, das quais 536 eram gestantes e 350 lactantes. No entanto, mesmo que a Lei de Execução Penal, em seu art. 89, defina que as penitenciárias femininas tenham de ter seção própria adequada para gestantes e parturientes, a referida pesquisa revelou que, no contexto brasileiro de 2016, apenas 50% das gestantes encarceradas estavam alojadas corretamente, em seção especial.

Paralelamente, a pesquisa realizada entre 2012 e 2014 pela Fundação Oswaldo Cruz, divulgada em seu documentário “Nascer nas prisões” (2017), apontou que 55% das mulheres presas obtiveram menos consultas pré-natais que o recomendado, apesar de a Lei de Execução Penal determinar, em seu art. 14, § 3º, a assistência médica à mulher no pré-natal.  A mesma pesquisa igualmente aponta que 36% das gestantes presas estiveram algemadas durante o parto, fato que se contrapõe à 11ª Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal de 2008, que estabelece o uso de algemas apenas para casos de resistência, receio de fuga e perigo à integridade própria ou alheia. 

Como exemplo de vítima da violência do sistema carcerário, destaca-se um caso de setembro de 2011, em São Paulo, no qual uma jovem detenta do Centro de Detenção Provisória Franco da Rocha, na região metropolitana de São Paulo, foi obrigada a dar à luz algemada pelos pés e mãos (A PÚBLICA, 2014). O caso teve repercussão nacional após ter sido denunciado pela mãe da vítima, resultando na condenação do Estado de São Paulo pela violação dos direitos da jovem parturiente, dada a situação degradante e humilhante a que foi submetida.

Não raro, o Estado falha em proteger, de fato, os direitos humanos das mulheres encarceradas, sobretudo gestantes, distanciando o Direito da realidade fática, pois “o direito abstrato não basta para definir a situação concreta da mulher” já que “os costumes se apressam em retirar-lhe tudo o que lhe concedem as leis” (BEAUVOIR, 2009 p.135-152). 

O reconhecimento dos direitos humanos no Brasil ainda encontra uma série de obstáculos para sua efetiva integração ao sistema penitenciário brasileiro. As dificuldades são ainda maiores quando se trata da realidade de mulheres presas gestantes. Versar sobre um tratamento penal que efetivamente atenda às necessidades intrínsecas do período gravídico-puerperal continua sendo objeto de importância reduzida, mesmo com o aumento vertiginoso de 567% da população carcerária feminina entre os anos de 2000 e 2016, segundo dados reunidos pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (2018).

Nesse ínterim, os problemas decorrentes de uma política de encarceramento, que não efetiva as condições necessárias dispostas na legislação penal, acabam embaraçando o decoro da detenta grávida e fomentando a depreciação das prerrogativas essenciais a sua existência. À vista disso, a desconsideração à dignidade da pessoa humana ilustra a continuidade de um ciclo social que subalterniza a maternidade da mulher presa.

Denota-se, portanto, que a sociedade brasileira custa em acolher as estruturas basilares dos direitos humanos, que consagram a universalização da liberdade, da justiça e das garantias fundamentais. Constata-se, nos complexos penitenciários nacionais, um desprezo às circunstâncias referentes ao período compreendido entre o pré-natal e o estado puerperal, deixando de efetivar o assistencialismo obstétrico adequado, além de não propiciar um apoio psicológico nos momentos anteriores e posteriores ao parto.

Diante disso, faz-se necessário entender que a gravidez constitui um evento que urge atenção especial das autoridades responsáveis pela tutela das presidiárias. Desse modo, a não promoção de um atendimento humanizado deprecia a vida da criança que está prestes a nascer, além de precarizar as mães que precisam de um ambiente saudável para dar à luz e vivenciar o puerpério imediato de forma digna. 

No entanto, o que se atesta é o domínio de um aparato institucional que perpetua uma estrutura insalubre. Nesse cenário, a obra “Presos que Menstruam”, da jornalista Nana Queiroz (2015), relata a realidade das penitenciárias femininas do Brasil ao abordar a aparelhagem repressiva dominante nesses locais, onde as mães e seus bebês, inúmeras vezes, são alojados em celas superlotadas com detentas que utilizam drogas ilícitas, ficando sujeitos a infecções de toda a natureza e sem as instruções médicas devidas para a seguridade de ambos. Soma-se a isso a violência física e psicológica exercida, em diversos casos, por agentes penitenciárias.  

Dessa forma, a análise da gravidez dentro dos presídios denota a desigualdade de gênero legitimada historicamente na trajetória nacional marcada pelo patriarcalismo e a invisibilidade do gênero feminino no seio social. Em decorrência, as mulheres residentes nas prisões têm suas liberdades existenciais duplamente cerceadas, uma vez que há a engessada marginalização em razão da simples condição feminina acrescida à estigmatização enquanto gestante e criminosa. Sendo assim, conclui-se que a subcidadania dessa parcela da população carcerária continua sendo tradicionalmente negligenciada pelas entidades públicas atuantes, omissão que as privam de usufruir dignamente de suas prerrogativas no âmbito prisional.

O domínio da visão masculina como norteadora para articulação de medidas que busquem atenuar o crítico cenário do sistema prisional brasileiro reforça a desconsideração das diligências específicas das infratoras do sexo feminino. Prova disso é o uso de algemas durante o trabalho de parto, postura que desumaniza o instante de nascimento, depreciando, em muito, a maternidade da mulher encarcerada, a qual, arbitrariamente, é submetida, a uma realidade punitivista violadora seus direitos fundamentais.

Nesse sentido, a ativista norte americana Heidi Ann Cerneka, que integrou a Pastoral Carcerária trabalhando a questão de gênero no sistema penal, denuncia, em entrevista, as divergências opressivas que compõem um arranjo penitenciário arquitetado centralmente para alocação de homens: “a mulher pode visitar seu marido, engravidar dentro da cadeia e sair: o problema é dela. Se a mulher está presa, o homem a visita e ela engravida: o problema é do Estado” (QUEIROZ, 2015, p. 132). Desse modo, o desprezo às especificidades biológicas e sexuais da mulher presa que pode vir a engravidar é amplamente reiterada, perpetuando um molde penal inerte quanto a uma possível modificação da circunstância analisada.

O “torna-se mulher” analisado pela filósofa Simone Beauvoir (2009) é refletido na realidade prisional brasileira que não proclama a igualdade de direitos entre homens e mulheres, compelindo no cárcere uma cultura de rebaixamento da gravidez. Nesse viés, a maternidade torna-se um evento destrutivo, caracterizado primordialmente pelo trauma do uso de algemas em um momento tão significativo afetivamente, mas, ao mesmo tempo, doloroso que demanda intenso esforço mental e físico em meio a um panorama assistencial deficitário. 

Isto posto, o ato de algemar um ser humano pelos pés e pelas mãos justificado pela possibilidade de uma tentativa de fuga deve ser repudiado, considerando a exposição do recém-nascido e das mães em situação prisional a uma conjuntura fundamentada com base em distorções da realidade. Nesse sentido, deve-se frisar que a própria condição de parto já é, por natureza, limitante de locomoção, de modo que limitá-la ainda mais promoveria desrespeito à dignidade humana durante o nascimento.

Medidas coercitivas dessa natureza denotam um arquétipo administrativo que transporta a mulher envolvida em práticas delituosas a uma ambientação prisional insalubre, o que acaba reverberando negativamente na aplicabilidade de uma justiça penal restaurativa e mais humana, que vise não somente punir o comportamento delitivo, mas também oferecer condições que deem margem para a condução de uma vida fora das cadeias para as mães com suas crianças. Logo, evidencia-se que a execução das leis penais é embasada sob a égide de estereótipos de gênero crescentes, padrões impróprios e hierarquias excludentes.

A conformação ao gênero feminino acaba impondo à encarcerada um estado de “coisificação” que afeta a incidência de um tratamento penal humanitário, auxiliando na manutenção de posicionamentos judiciais que rejeitam os aspectos distintivos inerentes às condições pessoais da mulher grávida. Por conseguinte, o documentário “Nascer nas prisões” (2017) constatou que um terço das entrevistadas no estudo relataram o uso de algemas no momento do parto.

Com base nisso, exprime-se uma generalizada barbaridade no que concerne à gravidez, abalando os direitos humanos das gestantes e parturientes, bem como consagrando a perpetuação de um ciclo jurídico que traduz a internalização de discrepâncias sexistas entre homens e mulheres inseridos nos complexos penitenciários. 

A LEI 13.343/17 E SUA IMPORTÂNCIA PARA A PROMOÇÃO DA DIGNIDADE DA MULHER ENCARCERADA

O crescimento da população carcerária feminina é um fenômeno em ascendência no Brasil de acordo com os dados levantados pelo Departamento Penitenciário Nacional (2018), que registrou uma alta de 567,4% na presença desse segmento nas cadeias. O aumento da incidência da lei penal sobre essa parcela da sociedade reclama, pois, uma vinculação mais cautelosa por parte dos órgãos estatais no que tange às condições da mulher em situação prisional. Seguindo essa perspectiva, cumpre pontuar que o Artigo 14 da Lei de Execução Penal, em seu parágrafo terceiro, assegura acompanhamento médico à mulher, com foco no pré-natal e no pós-parto. 

Por esse motivo, avista-se que a gravidez constitui um caso manifestamente especial que demanda do legislador um posicionamento mais atento. Contudo, em consonância com aquilo reiteradamente averiguado na população brasileira, verifica-se uma contraposição entre o “dever ser” da norma e o “ser” do mundo fático, ampliando a distância com o mundo constitucional jurídico. Como decorrência, há uma relutância no que diz respeito à operacionalização concreta dos direitos humanos que assegurem excepcional cuidado gravídico.

 Um indício dessa assertiva é que a gestação costuma ser uma ocorrência traumática, assinalada pela depreciação das prerrogativas destinadas à mulher presa, por condutas arbitrárias dos profissionais que ali trabalham sucedidas de ações notadamente impiedosas dos agentes penitenciários e policiais, que desprezam a importância da maternidade para a mulher e, sobretudo, desprezam as dores das contrações pré-parto, fazem uso abusivo das algemas nas alas hospitalares e, em outros casos, proferem discursos com traços de ódio contra a encarcerada e o seu filho. Ilustrando uma das incontáveis problemáticas que atingem o aparelhamento da justiça criminal brasileira.

 Tudo isso exterioriza a extensão de uma tradição patriarcal, onde o vínculo familiar é situado em torno da figura masculina que designa atribuições hierarquicamente inferiores à feminina, a qual acaba acumulando quantitativamente mais tarefas. Dito isso, o período gestacional é um acontecimento tipicamente celebrado pelos entes de uma família, porém os encargos decorrentes da responsabilidade parental permanecem socialmente segregados. Dessa maneira, Simone de Beauvoir (2009, p. 11-12) ilustra como as qualidades biológicas das mulheres são postas como restrições à sua liberdade enquanto ser humano: “a mulher tem ovários, um útero; eis as condições singulares que a encerram na sua subjetividade”. 

Nesse cenário, destrincha-se a ininterrupção de um ciclo depreciativo que atinge negativamente a maternidade e é fomentando dentro dos presídios por meio de uma estrutura que não preconiza auxílio clínico-obstétricos para as puérperas, demonstrando que a mulher, especialmente aquela privada de liberdade, se conserva como escrava da sua própria condição. A partir dessa assertiva, no livro “Prisioneiras” o médico Dráuzio Varella (2017) relata os martírios que vitimizam as detentas que chegam grávidas ou que engravidam durante as visitas íntimas, bem como aquelas com filhos concebidos fora do âmbito prisional.

 Outrossim, cabe destacar a duradoura validação do uso de algemas nos momentos que se seguem durante e após a parição, representando, concomitantemente, uma simbologia penal repressiva somada ao desrespeito dos direitos reprodutivos, da saúde e o comprometimento de estabilidade física e emocional tão necessárias para saída apropriada e digna do recém-nascido do corpo da parturiente. Ao distinguir as especificidades femininas, a legislação de execução penal admite a existência de prerrogativas objetivando resguardar a estabilidade das gestantes, dignas de uma tutela penal peculiar.

 Acompanhando o raciocínio das Regras de Bangkok, em abril de 2017 foi sancionada pelo então presidente Michel Temer a Lei 13.434/2017, que estabelece ser “vedado o uso de algemas em mulheres grávidas durante os atos médico-hospitalares preparatórios para a realização do parto e durante o trabalho de parto, bem como durante o período de puerpério imediato” (BRASIL, 2017). 

A Lei 13.434 é resultante do projeto de lei 4176/2015, de autoria da deputada Ângela Albino, apresentado ao Plenário no dia 17 de dezembro de 2015. A autora justificou o projeto ao defender que na realidade observa-se o uso abusivo de algemas por parte das autoridades em situações em que o indivíduo não oferece perigo de fuga ou de agressão – casos os quais a 11ª Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal declara lícito o uso de algemas – tendo, consequentemente, o único intuito de constranger o indivíduo.  Como consequência desse uso abusivo de algemas, a deputada expôs os casos nos quais a mulher grávida é algemada durante o trabalho de parto e/ou logo após o parto, casos em que, seguindo essa linha argumentativa, não existe perigo de fuga, resistência e nem agressão. 

Desse modo, visando a preservação do direito constitucional à dignidade humana das mulheres presas, a autora do projeto de lei propõe a inserção de um parágrafo único no art. 292 do Código de Processo Penal que proíba o uso de algemas durante os atos preparatórios do parto, o trabalho de parto e o puerpério imediato – período de aproximadamente 2 horas após a saída da placenta.

No dia 12 de abril de 2017, o projeto de lei 4176/2015 foi transformado na Lei Ordinária 13.434/2017, sancionada pelo então Presidente da República Michel Temer, incluindo no art. 292 do Código de Processo Penal o parágrafo único que determina a proibição do uso de algemas em gestantes durante os atos médicos preparatórios do parto, trabalho de parto e puerpério imediato.

Destarte, a alteração do artigo 292 Código de Processo Penal é um passo importante para superação dos desafios que atalham o reconhecimento dos benefícios da população carcerária feminal. Acolher necessidades dessa natureza solicita a transposição de um protótipo institucional recriminador que perdura hodiernamente, o qual não considera os assuntos centrais que afetam a aprisionada gestante, bloqueando sua reinserção na sociedade e fortalecendo a invisibilidade do gênero em razão dos tratamentos indevidos. 

Escoltando esse ponto de vista, Erving Goffman (1988) analisa a estigmatização que categoriza os indivíduos ao atribuir papéis sociais inferiores com base em preconcepções. Logo, as pessoas consideradas “normais” não acreditam que uma pessoa estigmatizada seja completamente humana. De tal modo, a utilização desproporcional das algemas em meio ao parto priva as parturientes de uma intervenção humanitária, espelho de procedimentos que cultuam o preconceito oficial quanto à mulher em situação prisional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados e considerações apresentados nesse artigo evidenciam como o emprego de algemas, o precário acompanhamento médico e o desprezo às exigências especiais das mulheres encarceradas gestantes acentuam uma conjuntura de segregação e invisibilidade social engessadas em desigualdades de gênero autenticadas estruturalmente. A reversibilidade desse contexto caótico, portanto, requer o reconhecimento universal das garantias que declaram a dignidade e igualdade da pessoa humana por intermédio de intervenções jurídicas e legislativas que de fato instrumentalizem o respeito aos direitos reprodutivos das encarceradas. 

Além disso, deve ser ofertado a essas mulheres condições que possibilitem o convívio com seus filhos, que de forma injusta são privados desde a mais tenra idade de estabelecer laços familiares com a figura materna, replicando, em razão disso, a marginalização social que vitimiza as presas e as pessoas a ela ligadas. 

Assim sendo, salvaguardar o cuidado obstétrico e ginecológico ainda encontra diversos impedimentos em virtude das condições encontradas dentro dos complexos penitenciários do país, locais onde o não reconhecimento da humanidade das detentas é naturalizado, abalando a saúde reprodutiva, sexual e psicológica destas. 

É importante ressaltar que as unidades prisionais responsáveis pelo acolhimento de mulheres infratoras estão adquirindo maior visibilidade das autoridades estatais e entidades da sociedade civil. A promulgação da Lei. 13.434/2017 elucida essas conquistas iniciais. O empreendimento de estudos e a avaliação de dados somados à promulgação de diplomas legais são passos fundamentais para o incremento de políticas públicas que busquem conter a violência perversa que acompanha o estado da gestação, do pré-parto e puerpério das detentas. 

Assim, diante das pesquisas, opiniões e dos argumentos contemplados ao longo dos tópicos do presente trabalho buscou-se frisar que a condução de uma gravidez saudável é uma prerrogativa de suma importância para a efetividade dos direitos humanos. Exatamente por isso, necessita que os estudos acerca da temática avancem efetivamente para a elaboração e implementação de políticas públicas e o desenvolvimento de ações que proporcionem melhores condições às mulheres em situação de cárcere e estado de gestação, pré-parto ou puerpério, e aos seus filhos recém-nascidos. 

REFERÊNCIAS

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BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. Tradução de Sérgio Milliet. 

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.

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