Aporias criminológicas: “Coringa” e a desconstrução do binário herói/vilão
4 de julho de 2024 2024-07-04 18:24Aporias criminológicas: “Coringa” e a desconstrução do binário herói/vilão
Bruno Amaral Machado
Lucas Villa
As interseções entre o Cinema e a Criminologia abriram campo de debate, ainda em construção, nos últimos anos. Este artigo integra a linha de pesquisa Criminologia e Arte do Grupo de Pesquisa Política Criminal (Uniceub/Unb) e procura explorar as múltiplas interseções entre os pensamentos criminológicos e a produção fílmica. Como sugerimos em recente estudo, as negociações sobre os sentidos da conflitualidade, da violência e do desvio no Cinema sugerem horizonte rico para a pesquisa criminológica contemporânea. As imagens e narrativas sobre o desvio e o crime constituem manifestações de criminologias populares que interpelam os saberes acadêmicos. Ao desafiar as tradições historicamente descritas como criminologias científicas, propõem novas possibilidades de observação e de descrição (Machado e Zackseski, 2019, p. 288).
As tradições criminológicas acumularam, desde o século XIX, inventário extenso de explicações para o crime, o desvio e suas formas de controle. Não se tratam de paradigmas sucessivos, mas concorrentes, pois os acúmulos podem ser localizados em distintas correntes, contemporâneas e contrapostas. As constantes atualizações dos discursos apontam para um campo complexo e em constante transformação. Os discursos acadêmicos configuram semânticas criminológicas distintas, constituindo memória social sobre o crime, o desviado e as formas de controle. Uma breve história da disciplina indica a atualidade dos discursos biocriminológicos, focados na associação entre corpo e agressividade. As correntes sociológicas, de variadas bases epistemológicas, percorrem tanto a via etiológica quanto os caminhos do interacionismo (modelos sequenciais e da reação social, por exemplo) e das vertentes críticas, com agendas e foco diferenciados.
O cinema pode servir como espaço para a reflexão crítica sobre temas que ocupam a agenda criminológica, na medida em que o espectador é desafiado a repensar visões consolidadas sobre as violências, os controles sociais formais e informais, as respostas institucionais e o castigo estatal. E pode interpelar discursos criminológicos críticos e contemplar agendas comuns, momento em que a narrativa artística se aproxima de parte dos discursos acadêmicos. Mas a produção cinematográfica também pode se constituir em locus de difusão de preconceitos, do racismo, da misoginia e do discurso do ódio. As narrativas não raramente são ambíguas ou se abrem a diferentes vias. Há agenda extensa a ser explorada.
Neste estudo propomos análise criminológica e filosófica do filme “Coringa”, de Todd Phillips. A partir da categoria memória social na tradição sistêmica, revisitada pela desconstrução, pretendemos (re) imaginar o binário herói/vilão que estrutura a narrativa fílmica hollywoodiana e, assim, repensar o binário verdadeiro/falso para descrever e desafiar as imagens estabilizadas sobre os enunciados da ciência. Nossa escrita parte do que denominamos de mitologia de Gotham City, momento em que descrevemos os arquétipos e lendas que povoam a cidade imortalizada nos comics e filmes. Ao apresentar o local em que transcorre a cena, expomos o enredo da obra e situamos os personagens e suas trajetórias. Sugerimos que as narrativas em torno da cidade mítica, povoada por heróis e vilões, conformam parte da memória social desse gênero peculiar na história do cinema. Essas narrativas acumulam material valioso a partir do qual acionamos distintos discursos para pensar e descrever problemas concretos como os conflitos, as violências e as cruzadas contra o desvio. O cenário descrito é reelaborado a partir das semânticas criminológicas que articulamos (“criminologias de médicos, advogados e sociólogos”) no debate com o leitor. Na última parte, pelas mãos de Jacques Derrida, propomos lente filosófica pós-metafísica da narrativa fílmica. A partir da desconstrução do binário herói/vilão investimos nas brechas que levam à desconstrução do binário verdadeiro/falso, estabilizado no discurso científico, e do binário criminológico etiologia/reação social. Ao final sugerimos que a proposta fílmica do “Coringa” constitui paradigma para se pensar as criminologias “do” cinema.
Algumas questões metodológicas e opções teóricas devem ser esclarecidas. A narrativa evidencia repertório aberto a múltiplas possibilidades teóricas e interlocuções filosóficas e criminológicas. No nosso percurso sugerimos duas vias: inicialmente, a construtivista, na vertente proposta por Luhmann, particularmente para a descrição das criminologias como subsistemas da ciência; na segunda parte, pela via desconstrucionista (Derrida), sugerimos outras possibilidades (transgressoras) de observação dos significantes estabilizados nas comunicações do cinema e das criminologias. Os repertórios abrem-se à revisitação, ao questionamento e disponibilizam novos cenários. Justificamos as escolhas: a teoria sistêmica constitui-se em ambiciosa proposta teórica para a descrição das sociedades contemporâneas. Propõe, entre outras frentes, a observação das comunicações em sistemas sociais diferenciados funcionalmente (política, economia, direito, religião, arte, ciência). Em sociedades diferenciadas funcionalmente, as comunicações vinculam-se a sistemas sociais autopoiéticos, que operam com programas e códigos próprios. No enfoque sistêmico, a função da memória social é liberar a capacidade de informação para que o sistema se abra a ressonâncias do entorno, pelo binário recordar/esquecer. A memória social não é o que as comunicações deixam como rastro nas consciências individuais, mas o resultado das próprias operações comunicativas. Toda comunicação atualiza determinado sentido (razão da memória social) (Luhmann, 2007, p. 457-458, p. 464)1 . A partir do mecanismo recursivo de novas operações, o observador pode identificar as mudanças estruturais históricas. Permite-se, assim, observar diferentes semânticas sociais. Particularmente, para o nosso artigo, aquelas produzidas pela arte (cinemas) e pela ciência (criminologias).
No giro proposto pela mão de Derrida, os códigos binários e os programas (suplementos) que orientam as semânticas da arte e da ciência são colocados em xeque. A memória social dissimula ou esconde suas aporias. Se a escrita possibilita a memória social (Luhmann, 2007), também carrega a marca ambígua do phármakon (remédio e veneno) (Derrida, 2005). Ao questionar as semânticas binárias, abrimos novos cenários, transgressores, que nos apontam para outras possibilidades hermenêuticas. Um último esclarecimento é necessário. Decidimos representar a diversidade dos pensamentos criminológicos como “criminologias de médicos e advogados” e “criminologias de sociólogos” (Zaffaroni, 2011). Por “criminologias de médicos e advogados” nos referimos às tradições biocriminológicas como matriz etiológica do comportamento desviado, às visões remanescentes do livre arbítrio (Escola Clássica) e à tradução de semânticas criminológicas (particularmente biocriminológicas) nas operações heterorreferentes do sistema jurídico. Por “criminologias de sociólogos” nos referimos às tradições no campo da sociologia criminal, que conformam repertório igualmente extenso e que contempla tanto modelos etiológicos, com explicações causais de fundo social, quanto tradições compreensivas e interpretativas, preocupadas tanto com os processos por meio dos quais os sujeitos atuam e interagem conforme sentidos compartilhados, quanto aquelas cujo foco foi redirecionado para a reação social e o etiquetamento dos comportamentos definidos como desviados.
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http://www.scielo.org.co/pdf/ojum/v20n41/2248-4078-ojum-20-41-315.pdf